Falta de regulamentação das redes sociais pode afetar campanha eleitoral de 2024

Desenvolvimento tecnológico impacta a política eleitoral e os atores envolvidos nos processos políticos.

Autora: Maria Célia Passetti
Editora: Prof. Larissa Bezerra

Em 2024, as eleitoras e os eleitores brasileiros irão às urnas para escolher prefeitos e vereadores. Mas não é apenas o Brasil que terá um 2024 movimentado em termos políticos: metade da população mundial terá ido às urnas neste ano. No Brasil, a campanha só começa oficialmente em meados de agosto, mas na prática ela já está a todo vapor há algum tempo.

O resultado das eleições sempre esteve ligado ao uso das tecnologias disponíveis em cada época. A TV era fundamental para a vitória até 2018, quando foi suplantada pelas redes sociais. A preocupação com o uso de fake news e ataques hackers ganham peso nas eleições 2024 com a chegada da inteligência artificial e a produção e veiculação de deep fakes nas campanhas, feitas com a novidade da Inteligência Artificial (IA), como foi possível ver nas eleições indianas recentemente.

Em abril deste ano, o embate entre o bilionário Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), acabou reacendendo o debate sobre a regulamentação das redes sociais no Brasil. Musk, que é dono do X, antigo Twitter, ameaçou descumprir decisões judiciais brasileiras de bloqueio de perfis criminosos no site e a história foi ganhando novos capítulos.

O acesso à tecnologia cada vez mais desenvolvida e em grande velocidade interessa a todos os setores da sociedade, assim como seus impactos sobre a democracia, cujo motor se dá por processos eleitorais. Dessa forma, a questão da regulamentação voltou a ser discutida, mas não tem avançado no ritmo necessário ao contexto das eleições municipais de 2024, porque criou-se um dilema quanto à melhor forma de conter abusos sem cercear liberdades. Enquanto isso paira no ar o temor de que as estratégias de desinformação nas eleições de 2024 sirvam de laboratório para a disputa presidencial em 2026, e de que a sociedade se torne ainda mais cética quanto à legitimidade dos processos democráticos.

De fato, esse é um debate que as eleições municipais podem reacender no Brasil até em função dos diversos interesses (políticos, jurídicos e econômicos) envolvidos nessa questão. O nó dessa discussão está na questão da liberdade de expressão, já que a extrema direita tem se unido às grandes plataformas para acusar o governo de pretender limitar/cercear essa liberdade.

Em 28 de maio desse ano, o Congresso Nacional decidiu manter o veto do ex-presidente Jair Bolsonaro à tipificação de crimes contra o Estado democrático de direito, entre eles, a criminalização das fake news nas eleições, entendida como a comunicação enganosa em massa de fatos sabidamente inverídicos.

Com isso o judiciário tem assumido o protagonismo de proteger a integridade das eleições com medidas que podem ser vistas por alguns como “nem sempre amparadas nos princípios democráticos”, mas que, contraditoriamente, se mostram necessárias para se evitar danos à democracia.

A regulamentação e os embates entre o legislativo e o judiciário

Imagem ilustrativa do Congresso Nacional.

Há 10 anos, o uso da internet no Brasil passou a ter princípios e garantias previstos na lei do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014) objetivando regular os direitos, garantias e deveres no uso da internet, para torná-la mais segura e democrática. Até então, não se tinha nenhuma legislação específica sobre esse uso, portanto, ele se configura como uma primeira regulação, na medida em que a economia, os serviços públicos e privados, a participação política, o acesso à informação e o direito à liberdade de expressão estão cada vez mais mediados pela internet.

De lá para cá, com as mudanças tecnológicas, o artigo 19 do marco tem causado polêmica porque prevê que os provedores de internet somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. É justamente essa não responsabilização das big techs que impacta a disputa eleitoral, principalmente em função do tempo delimitado e muito rápido das campanhas. A constitucionalidade desse artigo, entretanto, está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda julgará o tema.

Na opinião do advogado Maurício Giacomelli, que atua em campanhas políticas desde 2012, a palavra final é sempre do judiciário, que nesse caso específico, esclarecerá definitivamente a interpretação desse artigo, já que foi instado a se pronunciar. Mas ele acha que, mesmo que haja tempo de o tribunal julgar, ainda poderia haver recursos e, por isso, não deve impactar essas eleições municipais, para as quais o TSE tratou de publicar resoluções normativas válidas para esse período.

Apesar do ritmo mais lento da legislação, os brasileiros não estão  totalmente sem amparo legal, uma década depois promulgou-se outra lei sobre o tema, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), mas com a rapidez dos avanços tecnológicos há ainda desafios enormes para o uso seguro da rede como o combate à desinformação na internet, a regulação da Inteligência Artificial (IA), além da atuação transparente de plataformas de redes sociais.

O projeto de lei 2630/2022 conhecido como o PL das fake news
Quanto problema da desinformação tramita no Congresso, desde 2020, o Projeto de Lei 2630, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, trata do combate à disseminação de notícias falsas e regula a atuação das chamadas big techs, empresas responsáveis pelas plataformas digitais. O texto, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), foi aprovado pelo Senado em 2020, com relatório do senador Angelo Coronel (PSD-BA). A proposta, que responsabiliza as big techs pela disseminação de conteúdos por meio de seus algoritmos, enfrentou resistência na Câmara dos Deputados, onde tramita agora. Sem consenso para votação, o projeto deve ser tema de um grupo de trabalho este ano, conforme anunciado pelo presidente da Câmara Arthur Lira.

O projeto está sendo nomeado informalmente de PL das Fake News, porém parlamentares e cidadãos mais ligados à direita o chamam de “PL da Censura”. É o caso dos que têm criticado a proposta alegando cerceamento da liberdade de expressão dos usuários nas mídias sociais, pois acreditam que esse projeto poderá enquadrar conteúdos como “discurso de ódio” e até excluir as publicações das plataformas. Outro problema que eles alegam é que a limitação dos aplicativos de mensagens de distribuição de conteúdos em massa poderá afetar as suas bases de seguidores, pois, segundo eles, seus conteúdos são frequentemente alvos de investigação de agências de checagens e classificados como falsos ou fora de contexto. Do outro lado do espectro político, mais à esquerda, o principal argumento favorável utilizado é o de que a lei irá criar mecanismo para que as plataformas excluam conteúdos que geram “desinformação” e penalizam compartilhamento de conteúdos de discursos de ódio.

Além de parlamentaresas big techs também alegam que o projeto coloca em risco a liberdade de expressão dos usuários. As empresas temem punições em caso de descumprimento da lei. Enquanto essas normas não são aprovadas a própria preservação dos pilares da democracia e de suas instituições ficam sob risco.

A população que não acompanha os bastidores da política, tende a não compreender o papel de cada poder, e, por isso, em meio a onda de polarização vivida no país pós eleições de 2018, e a tentativa de golpe em 2022, é importante esclarecer esses papéis. De acordo com o professor de Direito Eleitoral Alisson Rosa, a regulamentação vem do poder legislativo, não importando de qual casa de leis (Senado ou Câmara), porque, para aprovação, o projeto é remetido à outra, e o judiciário deve fazer a aplicação aos casos concretos, porque, segundo ele, “sempre ficam pontos que não são abarcados nessas leis, principalmente quando envolvem novas situações geradas pelas mudanças tecnológicas”. Sempre que há conflitos de interesse, próprios das relações sociais, o judiciário é interpelado a agir.

Como a regulamentação emperrou no Congresso e o período eleitoral exige uma normatização, ao TSE coube fazer atualizações em suas resoluções eleitorais para abarcar os avanços tecnológicos e até ao STF julgar, por exemplo, ações que envolvam a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil.

Fake news e a polêmica entre liberdade de expressão e censura
Em nosso ordenamento jurídico, o conceito de liberdade de expressão não se confunde com censura prévia ou algo do tipo. O professor Alisson Rosa reitera que “em tese temos liberdade para falarmos o que quisermos, desde que não seja com o intuito de prejudicar alguém com base na mentira”. Além disso já temos leis que proibem certas questões em nossa sociedade, como, por exemplo, a apologia ao nazismo. Não se trata de tolher o direito à fala do cidadão, mas é preciso cobrar as responsabilidades pelos ditos e pelas suas consequências. Temos leis para os assédios, injúrias, racismo e outros crimes.

“A liberdade de expressão tem sido vilipendiada”, comenta o advogado Maurício Giacomelli. Isso se dá porque ela tem sido confundida com a desinformação, segundo o profissional. Ele afirma que a liberdade de expressão é a prerrogativa que a Constituição nos dá de manifestar nossas opiniões sem censura prévia. Em nosso regime democrático, não existe mais a censura prévia, não há necessidade de se passar por nenhum filtro censor como ocorria no período da ditadura. Mas essa manifestação livre de opinião não significa cometer crimes. Se a palavra dita contiver crimes já prescritos na lei (injúria, apologia a outros crimes, como terrorismo, feminicídio, incitação à violência contra mulher ou minorias etc.) seu autor deverá ser responsabilizado.

Como as fake news envolvem a difícil questão do imbricamento entre verdade e mentira em nossa atual sociedade regida pelo que chamam de pós-verdade, Juliana da Silveira, doutora em Análise de Discurso e professora da pós-graduação em Ciências da Linguagem da UNISUL, explica como muita gente acredita em desinformação.

Segundo ela, há trabalhos na área de Análise de Discurso político, que vem enfrentando esses novos desafios do discurso político na era digital. Até mesmo a conceituação do que seja realmente uma fake news (já que para os critérios jornalísticos se é notícia, não poderia ser falsa), uma manipulação, uma descontextualização de uma notícia e as mais variadas formas de imbricamento entre mentira e verdade.

Para ela, a questão da verdade e da mentira é a mais complexa, porque pressupõe que a verdade esteja em algum lugar, e já temos um problema aí, que é, grosseiramente falando, definir que lugar é esse, quem o ocupa. Já no plano das nossas práticas cotidianas não se teria tanta dificuldade assim para se detectar a verdade, tanto que já temos muitas agências de checagem que desmentem com facilidade uma “notícia fake”.

Juliana Silveira. Foto: arquivo pessoal

Para Silveira, essa crença ilógica em fake news tem muito a ver com o modo como recebemos as informações hoje, de forma “prêt-a-porter”, ou seja, pronta para consumir e compartilhar, já que deixamos nossos rastros nas redes e somos mapeados em nossos gostos e preferências políticas. Assim, é mais fácil receber uma informação que vem empacotada com a sua cara com conteúdos que você tende a concordar, ou no seu inconsciente deseja que aconteça, deseja que aquilo seja verdade, explicou ela.

Outro motivo é que, em geral, principalmente depois do WhatsApp e das redes muito personalizadas em que a gente segue amigos e pessoas que admiramos, tendemos a receber essas informações de pessoas em quem confiamos. Silveira explica que, nesses casos, “não é mais a Folha de São Paulo que fez uma notícia e mandou para você. É aquela pessoa que você admira, que você conhece, portanto, que você confia e acredita que esteja lhe dizendo a verdade ou que não mentiria para você”. Existiriam outros fatores, mas estes funcionam muito para aquelas pessoas menos letradas em tecnologia, na visão dela.

Os impactos dos avanços tecnológicos na política eleitoral
A tecnologia sempre impactou a mídia e a política, de formas diferentes, mas hoje a classe política, em geral, não tem conseguido acompanhar o modo como as tecnologias funcionam. Para Juliana Silveira, a classe política que está mais alinhada com o mercado acaba tendo mais chances de fazer circular suas campanhas. Ela considera de fundamental importância o quanto esse funcionamento das campanhas eleitorais estão atrelados a um forte financiamento político, principalmente dos grupos de extrema direita, que por sinal, estão se organizando no mundo todo, e como isso impacta os sujeitos políticos. Para ela, além das dificuldades com a falta de letramento digital da população, o maior problema hoje é o dessa comunicação cada vez mais “nichada”, via os algoritmos de IA, em que as big techs conseguiram mapear os perfis dos eleitores, coletando seus dados para fazer entregar, um a um, a comunicação política.

Foi-se o tempo que o povo não se interessava por política e que as discussões ficavam mais restritas. A internet, nesse sentido, democratizou a política. “Os e-leitores”, termo cunhado por Silveira em suas pesquisas sobre a política nas redes sociais, têm mais acesso e oportunidades de buscar as informações, mas ficam presos nas bolhas dos algorítmos, e são facilmente interpelados em seus desejos e crenças. Isso talvez explique um pouco da polarização política vivida em nosso país, que se dá de forma paradoxal, já que de um lado negativo, o resultado é a despolitização do debate político, mas de outro, temos uma maior participação da população nos processos eleitorais.

Segundo ela, estamos todos enredados na política e não importa a pauta que seja agendada, ainda que não dermos conta disso. Ela cita por exemplo as enchentes no RS, como um caso notório em que na própria discussão da tragédia muitas questões políticas mobilizavam as paixões das pessoas e se faziam presentes. Assim, falta sempre um debate mais aprofundado dos problemas políticos que nem todos se dispõem ou lhes são dadas as condições para fazer tal tipo de debate político.

Silveira lembra que havia uma estratégia, atualmente já abandonada pelas plataformas, de perguntar ao usuário se ele queria mesmo compartilhar a notícia não lida inteiramente. Esse é um tipo de mecanismo que poderia ajudar no combate às fake news, com a ajuda da própria plataforma. “Às vezes, compartilhamos porque concordamos só com o título e linha fina e isso pode ser desmentido já no decorrer do texto”.

Outro hábito ruim do internauta destacado pela professora é o de ir rolando as matérias infinitamente, porque na correria do dia a dia não temos muito tempo para a leitura. “Sabemos que a lei não tem tempo para verificar a quantidade de mentiras que rolam na rede, tudo isso acontecendo ao mesmo tempo e no processo eleitoral, em que o tempo é fundamental, torna-se um risco muito grande para os sujeitos políticos”, conclui ela.

Nesse sentido o advogado Maurício Giacomelli diz que “na dúvida não se deve compartilhar”. As pessoas têm que se conscientizar que a partir do momento que se encaminha para alguém uma mensagem você se torna tão responsável quanto quem originou a mensagem. O que tem que se fazer é procurar saber se aquele conteúdo suspeito é verdadeiro. E como saber? “Com certeza no Whatsapp, não”, brincou ele.

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