Desaparecimento da Irmã Benigna, uma das personagens mais importantes da história de Itaúna-MG, completa 76 anos

Processo de beatificação da religiosa está em andamento e encontra-se no segundo estágio.

Autor: Toni Ramos Gonçalves
Editora: Prof. Larissa Bezerra

Naquele dia, 16 de novembro de 1947, em um clima de tensão, Irmã Benigna passou o dia todo em uma reunião na Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Sousa Moreira, onde foi incessantemente interrogada e tentava explicar acusações feitas a seu respeito, envolvendo alegações de gravidez e um possível caso amoroso com um padre e/ou um médico.

O prefeito de Itaúna, Dr. Coutinho, que também era médico na Casa de Caridade, repetiu inúmeras vezes aos membros do Conselho Administrativo que os boatos não passavam de um mal-entendido. As pessoas presentes queriam a verdade a todo custo, mas sem explicações consideradas satisfatórias, continuavam a acusá-la. À noite, em meio a uma forte chuva, Irmã Benigna foi conduzida em uma viatura policial e desapareceu.

No dia seguinte, a população itaunense estranhou o súbito desaparecimento da freira, que não foi noticiado pelos jornais da época. Foi como se ela nunca tivesse existido. Com o tempo, o fato acabou caindo no esquecimento. É importante ressaltar que os boatos que envolveram a Irmã Benigna foram baseados em informações de teor duvidoso e incompleto, possuindo pouca ou nenhuma veracidade. No entanto, essas acusações acabaram se tornando o estopim para pausar a trajetória de uma das personalidades mais marcantes da história de Itaúna.

Em 15 de outubro de 2011, com o início do processo de beatificação da Irmã Benigna Victima de Jesus (1907-1981), a fama de santidade fez crescer o número de devotos, que decidiram “tirar a poeira dos arquivos”, com o objetivo de esclarecer o mistério que envolveu a “freira dos milagres” durante sua passagem pela cidade de Itaúna e seu inexplicável desaparecimento.

Jornal Brechó. Foto: Toni Ramos Gonçalves

Natural de Diamantina-MG, Maria da Conceição Santos, conhecida como Irmã Benigna, era filha de Joaquim Antônio e Eulália dos Santos. De origem simples, iniciou sua jornada na Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade – CIANSP aos 28 anos. Em 1935, ela chegou a Itaúna, onde permaneceu por doze anos como líder da Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Sousa Moreira.

Segundo os jornais da época e depoimentos de pessoas que conviveram com irmã Benigna, logo ao chegar, ela causou uma revolução ao estabelecer uma maternidade na Casa de Caridade. A freira valorizava muito o conceito de família e cuidava de questões como enxoval, presentes, batismos, formação e catequese. Irmã Benigna tinha um vínculo espiritual com as pessoas e era amada por muitos. A caridade era algo que ela valorizava enormemente, distribuindo alimentos para os necessitados no bairro das Graças, uma comunidade desfavorecida e próxima à Casa de Caridade.

No entanto, seu apostolado incomodava e despertava a ira de muitas pessoas. Segundo depoimentos, algumas Irmãs Auxiliares da Piedade, possivelmente influenciadas por médicos, começaram a conspirar para derrubar Irmã Benigna.

O empresário Manoel Gonçalves de Sousa Moreira, que dá nome à Casa de Caridade, deixou sua fortuna para essa instituição em seu testamento, uma vez que não tinha filhos. Isso provocou a indignação dos familiares, que sonhavam receber uma parte da herança. Em entrevista realizada em 2016, Otto (nome fictício utilizado para preservar sua memória e familiares), que era adolescente em 1947, revelou que os boatos faziam parte de uma conspiração para destituir Irmã Benigna do cargo e, assim, tornar o hospital lucrativo. Afirmou, também, que em 1947, qualquer pessoa diferente era considerada comunista.

Túmulo do empresário Manoel Gonçalves de Sousa Moreira. Foto: Toni Ramos Gonçalves

Após o término da Segunda Guerra Mundial, contou Otto, a política econômica começou a mudar rapidamente e muitas pessoas em Itaúna foram afetadas financeiramente. Assim, uma Casa de Caridade não podia cobrar pelos cuidados médicos e o espírito filantrópico e religioso dos médicos, que os fazia trabalharem gratuitamente no hospital, havia se perdido. Algo precisava mudar para reverter aquela situação.

A AMAIBEN (Associação dos Amigos de Irmã Benigna), mantém um acervo de livros de memórias, fotos, vídeos e áudios, além de publicações do Jornal Irmã Benigna Notícias, contendo inúmeros depoimentos de diversos amigos da freira, que foram coletados ao longo dos anos, com muitas informações, principalmente sobre o período em que ela esteve em Itaúna e do local para onde foi transferida na noite em que sumiu.

Num destes livros, a memorialista Maria do Carmo Mariano narrou o fato do sumiço da freira com riqueza de detalhes: “Da noite para o dia, dentro da casa que ela dirigia, espalharam que ela estava grávida e retiraram-na de lá presa, numa viatura policial, dizendo ser ela irmã do povo e comunista. […] Levaram-na para a Serra da Piedade, em 1948, e para o Asilo São Luiz em Caeté. […] Na Serra da Piedade, em oração e meditação, pedia a Deus e à Nossa Senhora forças para continuar, bem como perdoar tantos que a caluniaram, perseguiram-na e injustiçaram-na. […] Lá sofreu grandes dores por não poder se quer se defender. […] Foi colocada até num chiqueiro onde adquiriu várias doenças. […] Depois de mais de um ano na Serra da Piedade, os amigos conseguiram descobri-la e quando chegavam para visitá-la a encontravam nos serviços mais pesados, mas sempre alegre e recebendo a todos com amor e oração. Sua saúde já estava bastante debilitada e, quando Dr. José Nogueira, médico e amigo, foi visitá-la ficou horrorizado. […] Comunicou, então, à diretora da casa que a saúde de Irmã Benigna estava muito abalada […] dessa forma ela não aguentaria mais e que ele responsabilizaria a congregação por sua morte.”

Segundo o relato de Lúcia Moreira de Andrade, Irmã Benigna teria revelado a ela que passou 30 dias no “chiqueiro”, na Serra da Piedade, onde teve que se alimentar da ração dos porcos em um local extremamente frio. Foi nesse período que desenvolveu artrose e outras doenças.

O relato mais impressionante é de Geralda Maria de Jesus, em 18 de junho de 2008, natural de Angicos, município de Carmo do Cajuru – MG. Ela saiu da roça para Itaúna e foi trabalhar na Casa de Caridade, onde conheceu Irmã Benigna e viu de perto suas virtudes. Foi seu único emprego, onde se aposentou. Com uma voz cansada e emocionada, Geralda descreveu a bondade, a dedicação e a caridade que testemunhou vindo de Irmã Benigna e que, segundo ela, era incansável na missão de cuidar de todos, pacientes e funcionários, sempre com amor e carinho.

De acordo com o depoimento de Geralda, uma situação mal interpretada causou toda a confusão. “Nessa época, trabalhava no hospital um enfermeiro chamado Rubens, que bebia muito. Um dia, a Irmã Benigna estava ajudando o Padre Oscar a ungir os pacientes e esse enfermeiro entrou no quarto, viu e colocou maldade. Ele nem sabia o que estava acontecendo. Esse enfermeiro contou para sua namorada Lia, que era empregada do Dr. Coutinho, que encontrou Irmã Benigna no quarto com o padre, mas ele nem sabia o que ela estava fazendo lá com o Padre. Ele foi muito maldoso.”

Um ano após seu desaparecimento, a irmã foi encontrada no Asilo da Piedade, localizado na Serra da Piedade, no município de Caeté-MG. O amigo e médico José Nogueira a encontrou em um ambiente degradante e com a saúde debilitada, em consequência dos maus tratos que vinha sofrendo. Descobriu-se, então, que todas as acusações não passaram de boatos.

Contudo, irmã Benigna não perdeu o ânimo, nem sua fé desfaleceu diante de todas essas dificuldades. Ela seguiu sua vida, prestando serviços em diversas cidades de Minas Gerais: Lambari, Lavras, Sabará e Belo Horizonte. Por onde passou, fez inúmeras amizades e, mesmo após sua morte, continua sendo uma figura importante para muitos. Milhares de devotos continuam a pedir sua intercessão junto a Deus, tornando seu túmulo, localizado no jazigo 145, quadra 9, do Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, um dos mais visitados há mais de 30 anos, por causa dos inúmeros milagres atribuídos a ela.

Antes de ser considerado santo, um candidato passa por três estágios. Primeiro, é reconhecido como “Servo de Deus”, quando o Vaticano aceita abrir o processo de beatificação encaminhado por alguma diocese. Nesse primeiro estágio é feito o exame das virtudes ou martírio, uma etapa que requer mais tempo, pois o postulador precisa investigar minuciosamente a vida do Servo de Deus. Em fevereiro de 2022, foi concedido pelo Papa Francisco o reconhecimento das virtudes heroicas da Serva de Deus Irmã Benigna Víctima de Jesus, levando-a, à condição de “Venerável Benigna”. Este é o segundo estágio no processo de beatificação.

Da antiga Casa de Caridade, só restaram as ruínas, as quais há anos a sociedade tenta transformar num espaço cultural. Após o término do mandato da Irmã Benigna, foi decidido que o nome da instituição seria alterado para Hospital. Um novo prédio foi construído na época. Hoje, o Hospital Manoel Gonçalves atende a região e teve sérios problemas financeiros e de administração ao longo das décadas. Em 2023, a crise financeira foi tão grande que, por pouco, não prejudicou os atendimentos médicos. Recentemente, um empresário local ampliou as instalações e doou à instituição.

Ruínas da antiga Casa e Caridade. Foto: Toni Ramos Gonçalves

Em Itaúna, aos poucos, a memória da Irmã Benigna está sendo resgatada. Em 15 de junho de 2021, os vereadores da cidade aprovaram um projeto de resolução concedendo o título “post-mortem” de “Cidadã Honorária de Itaúna” à Irmã Benigna, em reconhecimento aos seus relevantes serviços prestados à comunidade itaunense.

A entrega do título ocorreu em uma Sessão Solene da Câmara Municipal. Após décadas, a Administração do Hospital Manoel Gonçalves construiu o Centro de Convivência Irmã Benigna em suas dependências, um espaço reservado aos funcionários do hospital, para momentos de alimentação e intervalo de descanso. Em 2016, no bairro Santa Edwiges, uma praça recebeu o nome da freira. Também, em 2021, no bairro Morada Nova, foi criada a “Casa Socialista Irmã Benigna”, que auxilia crianças em situação de vulnerabilidade em suas atividades escolares, além oferecer oficinas de artesanato.

Centro de Convivência Irmã Benigna, no atual hospital. Foto: Toni Ramos Gonçalves

Saiba mais
O relato de Geralda Maria de Jesus na íntegra:

“Meu nome é Geralda Maria de Jesus. Fui trabalhar no Casa de caridade Manoel Gonçalves Sousa Moreira, quando tinha 20 anos aproximadamente. Lá, nessa época, conheci Irmã Benigna que era superiora. No início, eu fazia de tudo na casa de saúde. Depois, fui colocada para trabalhar como auxiliar de enfermagem. Nessa época, eu convivi muito com a Irmã Benigna e pude ver bem de perto suas virtudes de amor, doação e caridade. Apesar de ser Madre Superiora, Irmã Benigna fazia todos os serviços, nos ajudava em tudo, desde cuidar da horta, da limpeza, dos serviços com os pacientes. Ela cuidava de todos, pacientes e funcionários, igualmente e com muito amor e carinho. Além disso, ela ajudava o Padre a ungir os pacientes. (…)

Nessa época, trabalhava no hospital um enfermeiro chamado Rubens que bebia muito. Um dia, a Irmã Benigna estava ajudando o Padre Oscar a ungir os pacientes e esse enfermeiro entrou no quarto, viu e colocou maldade. Ele nem sabia o que estava acontecendo. Esse enfermeiro contou para sua namorada Lia, que era empregada do Dr. Coutinho, que encontrou Irmã Benigna no quarto com o padre, mas ele nem sabia o que ela estava fazendo lá com o Padre. Ele foi muito maldoso, ele só enxergou a maldade.

A Lia, namorada do enfermeiro contou para o Dr. Coutinho, que era médico do hospital e prefeito na época, e ele contou para o provedor nosso, do hospital, que era o Dr. José Drummond. E eles interpretaram tudo errado, e foram em cima de Irmã Benigna e chamaram a Madre que era Madre Ângela na época, ela era muito brava. Madre Ângela era a Superiora Geral lá de Belo Horizonte. Eu estava de cama no hospital, não andava, mas o Padre Ubaldo muito amigo da gente me falava o que estava acontecendo. O Padre Ubaldo disse que estava acontecendo uma reunião. Era ele que me falava nesta hora estavam todos lá na reunião judiando de irmã Benigna e ela não tinha culpa de nada. Nesta reunião estavam o Padre Oscar, o enfermeiro Rubens que falou mal da Irmã Benigna, Dr. Coutinho, o provedor (…).

Na mesma noite, eles a tiraram de lá e sumiram com ela como uma condenada para um lugar. Este lugar tem nome de chiqueiro. Eles queriam que ela fosse embora para a rua, mas para a rua ela não foi de jeito nenhum, Nosso Senhor Jesus Cristo não queria que ela fosse para rua. Então eles ficaram judiando com ela muitos anos, muito tempo. No asilo da Piedade eles a colocaram para lavar chão, fazer comida para aquelas pessoas, cuidar das crianças e ficar sem alimentar. Se ela quisesse alimentar, era para ela lavar as panelas e fazer uma sopa, uma lavagem. Eles judiaram demais com ela. Era muito gorda, tinha um cisto que fez ela ficar presa naquele lugar (…) todo mundo falou que ela estava esperando uma criança, então ela queria ficar ali para ver aquela criança, para ver o que era aquilo ia dar. (…) A vida dela foi sofrer muito e o que a levou a ser santa foi o amor e o cuidado que tinha com as pessoas pobres e indigentes.”

* Toni Ramos Gonçalves nasceu em 1971, em Itaúna-MG. Escritor e editor, publicou livros solos e organizou antologias. Venceu vários prêmios literários pelo país e atualmente é graduando em História e Jornalismo. Redes sociais: @toniramosgoncalves

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