Brasil registrou 202,9 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2015 e 2021, segundo Ministério da Saúde

Somente nos quatro primeiros meses de 2023, Disque 100 registrou mais de 17 mil violações, mas estima-se que cerca de 80% dos casos não sejam denunciados formalmente.

Autora: Elaine Marques
Editora: Prof. Larissa Bezerra

Quando se trata de educação sexual e sexualidade para crianças e adolescentes, sempre nos deparamos com tabus e preconceitos. Porém, a falta de informação e orientação sobre o assunto, contribui para o aumento de uma das violações mais graves contra o indivíduo, que é a violência sexual.

Estima-se que mais de 80% dos casos ocorridos não sejam oficialmente denunciados e acabam caindo no esquecimento. Infelizmente, não para as vítimas, que carregam o trauma por muito tempo, até buscarem por ajuda profissional. Entre 2015 e 2021, foram 202,9 mil casos de violações no Brasil, conforme levantamento do Ministério da Saúde.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, violência pode ser qualquer ato que usa a força física, poder ou ameaça contra alguém, que resulte em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. Existem vários tipos de violência, e os principais são: violência física, violência psicológica, negligência/abandono/privação, violência financeiro econômica-patrimonial, trabalho infanto-juvenil, violência institucional e a violência sexual.

A violência sexual pode ser caracterizada por duas vertentes: exploração sexual e abuso sexual. Ambas atingem de forma significativa a saúde das vítimas. A exploração sexual ocorre para fins lucrativos, com a imposição de um adulto sobre a criança ou adolescente para que haja relação sexual para produção de imagens e vídeos, para comercialização. Enquanto o abuso sexual é todo ato ou jogo sexual com a intenção de estimular sexualmente crianças e ou adolescentes, visando a satisfação do abusador, geralmente com maior idade de desenvolvimento psicossexual.

Campanha pública para incentivar as denúncias
Em Maringá-PR, o Instituto APMIF São Rafael lançou uma campanha para alertar a comunidade sobre a importância de falar sobre o assunto.

A campanha foi lançada no mês de maio por conta do Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual Contra Crianças, lembrado no dia 18 de maio. A data foi escolhida em menção aos 50 anos de morte da jovem Araceli Cabrera Crespo, que foi estuprada e brutalmente assassinada, no ano de 1973, quando por alegação de falta de provas, o processo foi arquivado pela justiça.

Conforme dados apurados pela APMIF São Rafael, em Maringá, entre os anos de 2016 e 2020 foram feitas 540 denúncias, porém nem todas tiveram prosseguimento, além de grande parte dos casos não chegar até às autoridades competentes.

A campanha “Maringá Fazendo a Diferença Contra a Violência Sexual Infantil – Maio Laranja”, tem caráter permanente e foi criada com a finalidade de despertar na sociedade civil organizada um olhar diferenciado para as relações entre adultos e crianças.

O Abusador
De acordo com a psicóloga Edinea Juliana Maldonado, o abusador possui características perceptíveis. Se apresenta como protetor e zeloso. É insinuante e perspicaz, chegando ao ponto de acusar a criança de sedução para se livrar da culpa e pode se valer de ameaças física e psicológica para manter o segredo com suas vítimas, muitas vezes, oferecendo presentes ou dinheiro.

São homens ou mulheres que desenvolveram algum desvio ou disfunção das estruturas psíquicas, principalmente na intelectual, quando ainda estavam se constituindo como indivíduo. Mas é importante ressaltar que nem sempre um abusador foi abusado. Edinea explica que é um mito pensar dessa maneira.

A criança está mais vulnerável à violência porque ainda não tem conhecimento da sexualidade e não sabe diferenciar carinho de um ato sexual. No caso do abusador ser uma pessoa conhecida, acaba conquistando a confiança e como não sabe identificar o tipo de toque físico, a vítima o recebe como uma forma de carinho, ou seja, é um cenário favorável ao abusador. Existe também a possibilidade de a criança desenvolver a Síndrome de Estocolmo. Um estado psicológico, onde há a proximidade e empatia pelo agressor, consequência do contato frequente.

A orientação da psicóloga é para que todas as pessoas e meios em que a criança esteja inserida (pais, parentes, cuidadores e professores) fiquem atentas a mudança de comportamentos e atitudes, para que possam conversar e buscar ajuda. “É preciso ouvir com o olhar e atentar para as atitudes”, diz.

Por que tantos casos não são denunciados?
A falta da denúncia oficializada ocorre porque o abusador, em geral, é uma pessoa ligada diretamente à criança, em muitos casos em ambiente familiar. A maior frequência de abuso infantil vem por parte de padrastos, pais biológicos, avós, tios e padrinhos. Uma situação delicada, pois existe o conflito entre acreditar no relato da criança e causar um dano no núcleo familiar, baseadas no tabu social de que a família cuida e protege. Porém, é preciso desmistificar isso, nem todo o lar é o lugar mais seguro para a criança. É um cenário angustiante, principalmente para vítima, que, além e tudo, se sente culpada, o que causa um sofrimento ainda maior.

Para Edineia, não é justo que as crianças e adolescentes assumam sem ajuda as sequelas dos impactos que o abuso desencadeia no desenvolvimento psíquico, que ocasionalmente possam surgir como: traumas que incluem pesadelos, flashbacks, ansiedade e hiperatividade do sistema nervoso autônomo, diminuição da capacidade de regular as emoções e TEPT – Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Problemas emocionais e psiquiátricos como depressão, ansiedade, transtornos de humor, transtornos alimentares, automutilação e ideação suicida. Baixa autoestima e autoimagem negativa também podem surgir, além de dificuldades nos relacionamentos, disfunções sexuais e outras situações.

Vivian Silva, que é a coordenadora da campanha contra violência sexual infantil em Maringá, e a psicóloga Edinea Maldonado são unânimes em afirmar que os profissionais que lidam no dia a dia com esses casos se sentem tocados e ao mesmo tempo, com certa impotência. Estão preparados estruturalmente, com supervisão de outros profissionais para fazer os atendimentos, porém, têm um limite de ação. Muitas vezes veem os processos serem interrompidos e casos não solucionados, pois, sendo o abusador um indivíduo de convívio familiar, um provedor do lar, faz com que muitos prefiram não desestabilizar a convivência da família.

O que fazer para mudar essa realidade?
Para Edinea, disseminar a “sementinha da responsabilidade social” é o caminho. Ao notar um ato suspeito contra uma criança, não importando o vínculo, a melhor atitude é fazer a denúncia, de forma responsável e criteriosa, pois isso fará toda diferença.

Algumas ações são fundamentais para que haja mudança desse cenário, e uma delas é a mobilização da sociedade para “trabalhar o antes”, conversar mais, dar ouvidos às crianças e melhorar a constituição familiar como um todo.  Este é um tema que deve ser tratado de forma especial e pública. É preciso conscientizar a sociedade de que pode haver algo errado num relacionamento de uma criança com um adulto. É necessário encorajar as pessoas para que de forma responsável façam a denúncia oficial. Não será de todo a solução do problema, mas pode amenizar o sofrimento daquela vítima.

Em entrevista por e-mail, Maria Gabriela Brandino – Gerente da Proteção Social Básica do Município de Maringá, aponta quais caminhos as famílias percorrem para o acompanhamento e acolhimento, se constatados casos de violência contra crianças e adolescentes. O Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) através do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), está engajado na proteção da estrutura familiar como um todo. Se identificada alguma situação de violência, será ofertado à família atendimento particularizado. Os atendimentos são feitos por profissionais especializados, como assistente social e psicólogo.

Existe um protocolo já estabelecido para o andamento dos processos, e quando o caso é comunicado primeiramente ao CRAS, é seguido o procedimento segundo as orientações da Nota Técnica sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência, em vigência. Em casos de suspeita de violência sexual, há o envio da ficha de notificação de violência contra criança e adolescente para o Conselho Tutelar, para o Núcleo de Proteção à Criança e ao adolescente (Nucria) e para o CREAS.

Nestes encaminhamentos, os órgãos da rede de proteção se organizam da seguinte maneira: acolhida (visita domiciliar ou na unidade do CRAS), primeiros encaminhamentos (dependendo das necessidades da família), acompanhamento (grupo de acompanhamento e outras estratégias pertinentes como entrevistas individuais ou visitas domiciliares), conforme identificação de demandas na escuta especializada.

O CRAS também não tem autonomia quanto à notificação de violações de direito à criança e adolescentes, a comunicação ao órgão policial e Conselho Tutelar é feito de modo compulsório, seguindo normas técnicas existentes.

A importância da informação
A orientação de Maria Gabriela, Gerente da Proteção Social Básica do Município de Maringá, para amenizar o índice de casos de violência sexual contra criança é começar sempre com o conhecimento e aprofundamento teórico e profissionalização das intervenções. Tratando-se de violações de direito de crianças e adolescentes não se pode contar apenas com a sensibilização das pessoas, é necessário que haja campanhas formativas e informativas e discussões continuadas entre os profissionais que atuam com esse público.

Para que as políticas públicas e leis sejam de conhecimento público e cumpridas, Maria Gabriela diz que: “Tratando-se de violências contra crianças e adolescentes não há um único caminho. Para questões complexas, muitas são as formas de enfrentamento e a primeira delas começa com conscientização das próprias crianças sobre os seus direitos e deveres.”

Após a denúncia ser oficializada pelos órgãos competentes, algumas vezes diretamente após o atendimento feito no Hospital Universitário Regional de Maringá (HU), que orienta para a denúncia na Delegacia, as vítimas são encaminhadas para o exame físico feito pelo perito médico legista para comprovar se houve ou não a violência sexual, através de exame físico em busca de vestígios e lesões, para, após o resultado, iniciar a investigação.

O atendimento inicial é realizado pela equipe que acolhe a vítima, que pode ser no HU ou diretamente na unidade da Polícia Científica, caso a vítima busque atendimento diretamente no Instituto Médico Legal (IML). Importante ressaltar que mesmo que a vítima esteja no hospital de referência, é realizado o acionamento para a equipe da Polícia Científica para o atendimento, mais especificamente o IML. Mas esse processo só é feito após o registro do Boletim de Ocorrência.

O nome do exame realizado pela equipe da Polícia Científica é denominado Verificação de Violência Sexual (VVS), que deve ser realizado o quanto antes. Em até 24h o exame é realizado nas dependências do HU, com o deslocamento da equipe da Polícia Científica até a vítima. Após 72 horas, o exame é realizado nas dependências do IML, em que a vítima se desloca até a unidade.

Durante o exame físico, a criança é acompanhada pela mãe ou responsável. Quando não é possível a presença da mãe, deve haver o acompanhamento de outro familiar próximo à criança. Sendo impossível contatar algum familiar, o acompanhamento deve ser feito por um membro do Conselho Tutelar ou mesmo da equipe que fez o atendimento primário no hospital de referência. Os profissionais envolvidos se empenham em desenvolver atendimento humanizado, visando minimizar o sofrimento.

Somente no primeiro quadrimestre de 2023, mais de 70 casos foram oficializados junto a Polícia Científica de Maringá, todos esses casos ocorridos com vítimas menores de 18 anos, com média de idade de 13 anos.

Para a perita Maria Cecília Begnossi, se repete o mesmo problema dos outros órgãos, que é a interrupção dos processos relacionados à violência sexual, sobretudo de crianças e adolescentes, pois as famílias acabam abandonando o processo.

O trabalho realizado pela Polícia Científica é de suma importância para a continuidade do processo e comprovação do crime, mas poderia ser mais completo com a inclusão de um profissional da psicologia na equipe, no papel de acolhedor e orientador da vítima e da família, durante a realização do exame físico e na conscientização da necessidade da continuidade no processo.

Existem os meios de acolhimento e as leis para serem cumpridas, mas para o andamento do processo, a iniciativa e coragem das pessoas em fazer as denúncias são fundamentais. Após os procedimentos técnicos, essas vítimas e suas famílias terão necessidade de um acompanhamento a longo prazo, já que é comprovado que o prejuízo psíquico é muito grande e precisa de apoio em diversas instâncias.

Como denunciar
Ao saber ou presenciar violências contra crianças ou adolescentes, incluindo situações de violência sexual, é possível fazer a denúncia ao Conselho Tutelar do município, às delegacias de polícia, para a Guarda Municipal quando houver, ou mesmo aos destacamentos da Polícia Militar. As denúncias também podem ser feitas anonimamente, por meio dos telefones 181 ou 100.

* Elaine Marques: acadêmica do 2º Ano Curso de Jornalismo EaD, da UniCesumar, tem 52 anos, é produtora de eventos e gerente administrativo. Mãe da Bruna Caroline Munhoz, 28 anos, formada em Engenharia de Produção/UEM. Apaixonada pela comunicação, estou buscando conhecimento para realmente escrever bem. Num momento em que a comunicação é uma das principais ferramentas para os relacionamentos interpessoais e as informações são transmitidas de forma rápida, nada melhor que fazer parte desse mundo, de forma ética e responsável.

One thought on “Brasil registrou 202,9 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2015 e 2021, segundo Ministério da Saúde

  1. Colega Elaine, meus parabéns pelo texto. Assunto delicado, porém, necessário de ser lançado aos olhos dos leitores. 80% dos casos não formalizados é muita coisa e assusta realmente. Desejo todo sucesso nessa trajetória da comunicação.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *