“A mulherada está invadindo a cabine de comando, mesmo assim, ainda somos minoria”, diz comandante Crys Ataide

As mulheres estão conquistando espaço na aviação, mas ainda batalham para acabar com a desigualdade no setor.

Autora: Pietra Gomes*
Editora: Prof. Larissa Bezerra

Muitos homens tiveram papéis importantes na aviação e nunca serão esquecidos, porém, se engana quem pensa que as mulheres não se interessavam em fazer seus nomes serem lembrados. A francesa Elisa Léontine Deroche, também conhecida como Raymonde Laroche, foi a primeira mulher no mundo a conquistar a licença para pilotar aviões. Em 8 de março de 1910, ela se tornou a primeira a realizar um voo solo.

Passado alguns anos, precisamente em 1937, Amelia Earhart foi a primeira mulher a atravessar o Oceano Atlântico pilotando um avião. Porém, o feito não foi suficiente, ela queria mais e aos 40 anos embarcou na tentativa de dar a volta ao mundo. Infelizmente o plano não deu certo e a piloto morreu, mas é lembrada até hoje por pela coragem.

No Brasil, em 7 de setembro de 1922, Anésia Pinheiro Machado se tornou a primeira mulher a fazer o voo entre São Paulo e Rio de Janeiro. A viagem durou quatro dias e meio porque ela só podia voar uma hora e meia por dia, já que precisava pousar para fazer manutenções no avião.

As grandes conquistas dessas mulheres não foram suficientes para que o espaço delas na profissão aumentasse rapidamente. Elas continuaram sofrendo discriminação e encarando muitos desafios para mostrar que realmente tinham capacidade de pilotar. Com a evolução constante da sociedade, essas situações ainda continuam a acontecer, mas em menor escala.

De acordo com dados divulgados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), as mulheres ocupam apenas 5% dos cargos de piloto no mundo inteiro. No Brasil, a estimativa é de que o índice seja menor, só 3%. Em outras funções a porcentagem também é baixa, como controladoras de tráfego aéreo. São 26% no mundo e 50%, no Brasil. Na parte de manutenção são 9% no mundo e 2,4% no país.

Visando mudar esse cenário, a partir de 2024 a Universidade de Brasília (UnB) e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) se juntaram e estão à frente do projeto de pesquisa “Mulheres na Aviação Civil: Estudos para uma Regulação Inclusiva no Setor”. O objetivo é identificar as dificuldades que impedem a participação das mulheres no setor, reduzindo a desigualdade de gênero e os tratamentos discriminatórios.

Para entendermos mais sobre o trabalho e a luta das mulheres por espaço nessa profissão, confira a entrevista completa com Crys Ataide, comandante da Voepass Linhas Aéreas. Ela é natural do Amazonas, cidade de Manaus, e foi promovida a comandante há seis meses. Atualmente, a base dela é em Fortaleza.

De que forma você se apaixonou pela aviação e quais foram as suas principais motivações para entrar nesse ramo?

Eu morava perto do aeroporto com os meus pais, e o meu pai gostava de me levar em um deck no aeroporto de Manaus. Ele era aberto e antigamente tinha muito isso de visualizar as aeronaves chegando por lá. Depois que cresci, nunca tinha pensado em trabalhar com aviação, era algo que eu achava legal, mas nunca imaginei trabalhar com isso. A primeira faculdade que comecei a fazer, e não terminei, foi turismo. Na metade da faculdade entrei como estagiária na Total Linhas Aéreas, de Manaus, e foi através de lá que conheci a aviação. No meio do estágio, todo mundo disse para eu fazer o curso de comissária por ter o perfil necessário, e eu fiz. Sentia que ainda não era minha paixão, mas a vida foi me levando por esse caminho. Fiquei sete anos trabalhando como comissária, entrei na TRIP Linhas Aéreas – que depois foi comprada pela Azul – então trabalhei pra eles também durante a fusão. Nesse meio tempo, eu tinha um olhar diferente para a cabine de comando e achava que iria gostar de estar lá. Olhava para aquilo cheio de botões e pensava que era difícil, que não conseguiria, às vezes eu me diminuía, ainda mais porque o curso é bem caro. Mesmo trabalhando como comissária, me formei em Arquitetura e Urbanismo, pensei em sair da aviação para trabalhar na área, mas no final da faculdade fiz estágio em um escritório e era um tormento ir para lá. Decidi que não queria isso para minha vida, então minha coragem aumentou para entrar na aviação.

Como foi para você essa mudança de carreira?

Meus pais super me apoiaram, e eu tinha algumas economias na época. Vendi meu carro, meus pais também venderam a casa, e isso ainda nem pagava a metade do curso. Mesmo assim, consegui estudar nos Estados Unidos para tirar minha carteira de piloto privado lá. Mas com o que estava acontecendo no Brasil na época, como o aumento do dólar e o impeachment da Dilma, precisei voltar para o país. Tirei a carteira de piloto comercial aqui, fiz a teoria em Eldorado do Sul, no Rio Grande so Sul, e a prática em Pará de Minas, em Minas Gerais. Logo procurei emprego, porém com poucas horas de voo, o negócio ficou complicado. Aproveitei esse tempo para fazer ICAO e Jet Training para dar um diferencial no currículo. Voltei a ser comissária de bordo por nove meses na Embraer, em São José dos Campos, na cidade de São Paulo, e foi quando consegui entrar na Voepass Linhas Aéreas – mais pra frente eles compraram a MAP Linhas Aéreas. Praticamente saí do aeroclube e entrei em uma linha aérea, o que é difícil de acontecer, poucas pessoas conseguiram isso. A oportunidade foi muito boa, a empresa queria uma cara diferente e contrataram uma mulher, então meu currículo estava no lugar certo, na hora certa.

Você percebeu que a aviação tinha algo diferente. A liberdade desse ramo foi o que mais te atraiu?

Quem trabalha dentro da aviação costuma falar que vai ser uma cachaça – referente a forma de trabalho agitada. É uma área onde os procedimentos de fato são seguidos de uma forma diferente, mesmo para quem trabalha em solo. Podemos observar que a galera que está dentro da aviação gosta mesmo, não tem muita rotina, elas estão felizes e na mesma vibe. Os modos de trabalhar encantam quem está ali dentro, por mais que tenham coisas específicas que não se vive sempre no dia a dia. A rotina do aeroporto cativa, ainda mais por ter muitas pessoas chegando, indo embora, vivendo momentos ali, e isso encanta quem trabalha. Nós que levamos as pessoas também temos a oportunidade de conhecer um pouquinho de cada lugar e a história de cada pessoa. A janela do nosso escritório é maravilhosa, sempre que decolo, ela está linda.

Crys Ataide. Foto: arquivo pessoal

Quais mulheres te inspiram nessa profissão?

Quando entrei na área, eu não conhecia muita gente, fui descobrindo ao longo do caminho. Uma pessoa que me inspirou muito foi uma comandante que voa na Azul, a Betânia. Eu participava da tripulação dela, achava sensacional. Também admiro a Teresa, ela voa na Azul. Sempre que eu voava com essas mulheres, achava sensacional, hoje as encontro e digo que elas são fodas! Eu me inspiro até hoje. Lembro que a Teresa fazia uns speeches – avisos aos passageiros – bem legais. Ela perguntava se tinha criança a bordo para o pessoal falar os nomes delas para toda a aeronave. Além disso, o Crew resource management – gerenciamento de recursos da tripulação – dela era muito legal. E a Betânia é uma profissional maravilhosa, todo mundo elogiava as habilidades técnicas dela. Realmente me inspirei nessas duas mulheres. Claro que tem homens que aparecem no caminho e nós os vemos como inspiração, porém eu nunca as esqueço por ter trabalhado com elas na minha época de comissária. Hoje, as enxergo com outra perspectiva por estar no lugar que elas também ocupam. Claro que existiram as pioneiras da aviação, mas o fato de eu ter tido uma troca real com a Betânia e Teresa fez com que tudo se tornasse mais especial.

Referente ao papel das mulheres dentro da aviação, você consegue observar alguma diferença da época em que você começou para os dias atuais?

Antigamente, era bem mais difícil ver uma mulher na cabine, era algo raro. Tanto que quando eu voava com as meninas, era algo diferente por ser difícil de ver. Hoje em dia, a mulherada está tomando conta, está invadindo a cabine de comando, isso é muito legal. Mesmo assim, ainda somos a minoria. Não só como piloto, mas em outras áreas também. Particularmente, nunca trabalhei com ninguém da manutenção que seja mulher. Participo de um grupo de aviadoras e quem está dentro da área pode até não conhecer pessoalmente, mas em algum momento você escuta falar sobre ela, porque é um grupo reduzido. Comandante é pior ainda, tem bem menos. Na empresa em que trabalho sou a única comandante mulher, até mesmo antigamente eu era a única copiloto. Já entraram algumas copilotos que saíram no meio do caminho, isso acontece muito. A mulherada sai por questões pessoais, normalmente querem engravidar e não tem rede de apoio ou possuem a rede de apoio, mas não da certo. A questão familiar pesa muito, acredito que seja um dos principais motivos de evasão das mulheres na aviação. Felizmente tenho uma rede de apoio que ajuda a cuidar da minha filha de três anos, principalmente depois que fui promovida e vim para Fortaleza. Se eu não tivesse isso, também seria inviável pra mim.

Em fevereiro de 2024, a Anac e a Universidade de Brasília compartilharam que estão a frente de um projeto de pesquisa chamado Mulheres na Aviação Civil: Estudos para uma Regulação Inclusiva no Setor. O objetivo é identificar as dificuldades que impedem a participação das mulheres no setor, reduzindo a desigualdade de gênero e os tratamentos discriminatórios. Diante desse projeto, como você acredita que essa, e outras iniciativas do tipo, podem impactar a presença feminina na aviação?

É muito bom que existam essas iniciativas, porém também acredito que além de incentivar as mulheres, é preciso dar os recursos necessários. Também acho que é importante criar projetos assim pra quem já está dentro da aviação. Hoje temos a escala mãe, ela começa a ser usada depois que a licença-maternidade termina, e auxiliam as mães a fazerem só voos de bate-volta, dessa forma elas não pernoitam. Porém, isso só acontece por um tempo, depois que termina elas voltam a fazer voos mais longos e precisam conciliar a família e o trabalho. Então acho que ainda tem que ter algumas mudanças, principalmente quando falamos de gênero e tratamentos discriminatórios. Eu nunca passei por nenhum preconceito, na verdade. Teve até um comandante que tive desentendimento, porém ele já era mais velho, era das antigas, até se aposentou. Ele teve problema com todo mundo, não só comigo, então me surpreenderia se eu não tivesse problema com ele. Infelizmente, existem ainda muitos preconceitos, já soube de histórias de esposas de pilotos querendo que eles não pilotem ao lado de uma mulher porque ficam com ciúmes, enfim, já vi ouvi várias outras coisas. No geral, essas iniciativas como da Anac podem ser importantes se forem feitas da maneira correta.

Qual conselho você daria para as jovens que sonham em se tornar pilotos, mas que se sentem desencorajadas quando percebem os obstáculos que a profissão ainda oferece?

Se é isso que você quer, vá sem medo, corra atrás. Vão existir obstáculos, porque todas as profissões possuem, mas não desista. Eu já pensei muitas vezes em desistir, mas não quero largar a aviação. Não quero nunca deixar de lado, é uma área que sou apaixonada. Eu conheço muitas pessoas que amam aviação, amam estar nesse ramo e que não querem sair de jeito nenhum, elas realmente gostam. Claro que, às vezes, você estará pilotando no dia do Natal e não vai querer realmente estar ali, porém faz parte da profissão. Se é o que você gosta, siga o seu sonho. Com certeza ter mais mulheres na área profissão será ótimo.

Crys Ataide em voo. Foto: arquivo pessoal.

*Sou a Pietra Gomes, carioca de 23 anos e estudante de jornalismo que ama escrever, ler, escutar música e assistir séries. As áreas da comunicação que mais gosto são as de entretenimento, literatura, cultura, astronomia, entre diversas outras com as quais que me sinto bem em me envolver e aprender. Além de participar da Revista Vozes, também sou bolsista de Iniciação Científica da UniCesumar.

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