Martinho Bugreiro e a violência contra indígenas durante colonização europeia em Santa Catarina

Conheça a versão dos povos originários sobre o assunto.

Autora: Berta Thiesen*
Editora: Prof. Larissa Bezerra

As terras que hoje compreendem ao estado de Santa Catarina têm sangue indígena derramado nas mais variadas regiões. Durante cerca de 45 anos o estado viveu em uma guerra de pouco espaço nos registros formais, mas de grande peso na cultura transmitida de geração em geração.

A ideia aqui não é enaltecer os feitos, especialmente de um assassino, mas sim lembrar uma história, tal qual a da escravidão e da mesma forma que se lembra do holocausto: de maneira a narrar algo que aconteceu e torcer para que a consciência humana tenha evoluído o suficiente para nunca mais repetir tamanho sofrimento.

Entenda o contexto histórico:

Os tempos mudam e os impactos do período ainda são sentidos

Walderes Coctá Priprá é nascida e criada na Aldeia Bugio, uma das aldeias que se formaram a partir do aldeamento indígena realizado no Alto Vale do Itajaí, em 1914. Pertencente ao povo Laklãnõ, é uma das indígenas mais instruídas academicamente da região. 

Por 12 anos, Walderes foi professora na rede estadual em sua terra indígena. Na Universidade Federal de Santa Catarina, ela cursou mestrado e licenciatura em Intercultural Indígena. Atualmente, está cursando doutorado em Arqueologia na USP, em São Paulo.

Em entrevista à Revista Vozes, Walderes conta um pouco da história desse período, chamado de ‘pacificação’ pela visão dos Laklãnõ. Ela relata que, até hoje, há impactos da violência sofrida e aponta novas formas de tentativas de exterminação de seu povo.

Revista Vozes: Walderes, você pode nos contar o que ouviu dos seus antepassados sobre Martinho Bugreiro?

Walderes: O povo Laklãnõ é um povo da oralidade. Hoje estou com 39 anos e, desde muito pequena, a gente ouvia as histórias do passado, até mesmo muito antes do contato de 1914, ato conhecido como “pacificação”. Por muitas vezes quando estávamos no mato, fazendo nossas caçadas, colheita de mel ou até mesmo de pinhão, a gente parava nos acampamentos onde estavam contando as histórias do passado. E foi nesse momento então que eu conheci pela primeira vez a história do Martinho Bugreiro. 

Ele foi contratado especificamente pra exterminar o povo indígena Laklãnõ no Alto e Médio Vale do Itajaí. Eles tinham, na época, como uma limpeza da área para a civilização. Foi um processo muito difícil, muito doloroso, até hoje ainda é muito doloroso pra nós contarmos essas histórias, saber que o próprio estado contratou, não somente o Martinho, mas várias outras pessoas, para exterminar o povo indígena Laklãnõ. Então, houve muitas mortes para que, na época, pudesse se ter as colônias alemãs, italianas, enfim, dos imigrantes que vinham de outros países para o Brasil. E em toda essa transição quem sofre é o povo Laklãnõ. 

Como sempre falo, o povo Laklãnõ não tinha limite de território. Eles tinham um território que vinha desde o litoral sul de São Paulo, que passava pelo Paraná, SC e ia até no Rio Grande do Sul, em Vacarias. Então, eles tinham um território muito vasto, muito grande, onde eles podiam fazer suas cerimônias, seus rituais, muito antes de ter contato com o homem não indígena, homem branco chamado hoje. Então, nesse processo todo, muitas pessoas, os historiadores, arqueólogos, antropólogos, sempre falam que o povo Laklãnõ era um povo nômade. Mas não. Eu sempre digo que o povo Laklãnõ não era um povo nômade, porque o nômade sai sem direção, vai pra qualquer lugar, ele para em qualquer lugar. O povo Laklãnõ não. Eles tinham destinos para ir, sabiam onde iam parar, qual rota fazer, quais eram os lugares que não tinham perigo para eles se esconderem. E faziam tudo isso mediante um dos rituais, que hoje ainda é feito dentro da comunidade, que é o ritual do coplã. Esse ritual mostra os caminhos, onde seguir, mostra se teremos dificuldades durante o decorrer do ano, ou se vamos ter mortes, enfim. Esse ritual do coplã que nos conduzia e ainda nos conduz. Então, não considero dentro da história do povo Laklãnõ que ele é um povo nômade, mas sim como um povo que sabia exatamente o que queria e para onde queria ir.

Quando veio o período da colonização, já em 1845, por aí, aí é nesse momento que começa os ataques contra os indígenas, que a gente começa a ver mortes, eu sempre falo que não foram mortes somente dos indígenas porque também tiveram mortes dos não-indígenas, mas a gente só tinha arco e flecha. 

Eu me lembro até hoje, tinha 12 anos e foi uma história que marcou muito a minha vida. Quando a gente estava no assentamento chamado Bom Sucesso, que faz divisa entre os municípios de Itaiópolis e Doutor Pedrinho. E eu conversando com os anciões. Um deles narrou para mim a história do Martinho Bugreiro. Ele disse que era uma das cenas que, quando a tia avó dele contou pra ele, ele nunca mais iria esquecer. Porque a irmã da tia avó dele foi uma das mulheres mortas pelo Martinho Bugreiro. Ela foi dilacerada quando estava grávida e, com um facão que ele tinha, ele passou do ombro até mais ou menos nas nádegas, onde cortou toda a barriga dela e o feto dela caiu no chão. 

E aí não só essa, tem várias outras histórias, que estão relacionadas à Martinho Bugreiro e seus capangas, que eles pegavam suas vítimas e levavam como troféu. 

Tropas de Martinho Bugreiro. Reprodução Portal do Rancho

Sobre os impactos: quais impactos Martinho Bugreiro causou na história do povo Laklãnõ e posterior a ele, teve algo que foi feito governamentalmente e humanamente após Martinho?

Bom seria se tivesse, mas nunca fomos atendidos. Somos ignorados até hoje pelo próprio governo. Muitas pessoas pensam que o governo, tanto estadual quanto federal, nos dão auxílio, alimentação, bolsas para poder sobreviver, mas isso é tudo mentira. Não é verdade. 

Até mesmo pra gente estudar, é a gente que tem que buscar, porque dentro da legislação, dentro da Constituição Federal, nós temos as leis que nos garantem que o estado deve arcar com toda a educação, com toda a saúde dos povos indígenas, mas isso não acontece. Lá no papel é muito bonito, mas na prática a gente tem que lutar constantemente pra termos uma saúde decente, uma educação de qualidade. E é tudo à base da luta mesmo. 

E quanto ao que hoje ficou pra nós, é essa violência psicológica que ficou. Tanto a violência física que ficou marcada em nosso povo, mas a violência psicológica. 

“Bugreiro” vem de chamar o povo de bugre, chamando assim quer dizer que é um povo sem alma, um povo sem Deus, que não merecia sobreviver. E hoje quando a gente dá nossas palestras – eu sou palestrante também – a gente sempre acaba falando da importância de as pessoas conhecerem as palavras que não devem ser faladas no dia a dia, como a palavra bugre, bugreiro, índio, que hoje tem um sentido pejorativo.

Particularmente, como você se sente com relação a isso?

Contar a nossa história, da nossa visão, é muito difícil. Hoje é que a gente tá começado a contar nossa história, a partir da nossa visão mesmo. Porque agora também é muito recente que a gente começa a conhecer um pouco mais da escrita, da importância dessa escrita. Nossos anciões, nossos sábios, eles sempre estão nos incentivando para que a gente escreva a nossa história, para que as pessoas possam conhecer e valorizar nossa cultura, nossa língua, nossa tradição. Por muito tempo quiseram silenciar nossa história. 

Hoje a luta é constante. Pra gente falar da nossa história não é fácil. Contar que hoje, Itapema, município muito conhecido, Meia Praia também… contar que os bugreiros estendiam 16 léguas de corpos indígenas na beirada da praia e tocavam fogo. Que eles eram pagos por pares de orelha, sabe?! Isso pra gente é doloroso, pra gente é triste. 

Para as vítimas que ele não matava, que levava para as metrópoles para servirem como mulher da vida, ama de leite, várias coisas que pra gente é muito doloroso. E aí aquelas crianças que ele pegava e levava, para que as crianças não fugissem, onde eles colocavam, cortavam as solas dos pés. Das mulheres que tinham condições de fugir também cortavam as solas dos pés para que não conseguissem.

A atrocidade foi grande. E essa atrocidade foi causada pelo estado brasileiro, mas também por muitos colonos que vieram na época e que realmente vieram sem saber. Era o sonho deles ter um lugar onde pudessem montar a vida deles, onde pudessem esquecer o passado de guerra, o passado de fome. Mas com isso quem mais sofreu foi o povo Laklãnõ, que perdeu grande parte de seu território e foi colocado hoje nesse espaço onde estamos, que é a terra indígena Laklãnõ. Estamos brigando pela demarcação das nossas terras, que já eram nossas, mas devido às colonizações ao nosso redor, muitos dos nossos terrenos foram vendidos e muitos outros algumas pessoas se apossaram. Então, é uma luta muito grande para conseguirmos de volta esses locais, porque pra gente não é só a lembrança da terra, de 50 ou 100 anos, mas pra nós o significado da terra é muito grande. Pra nós, a terra é vida, a terra é tudo. 

Depois do martinho, teve algum outro caso semelhante ou que tivesse uma relevância de ter tocado o povo Laklãnõ?

Hoje, nós temos o próprio estado que age como se fossem os “bugreiros”, porque é o próprio estado catarinense que tenta nos matar. Nos negando nossos direitos, negando o que a constituição nos garante. E em um passado muito recente, ele envia tropas para terras indígenas para matar o povo Laklãnõ. […] E depois a mídia, que dá outros fatos, onde quem são os culpados são os indígenas. O estado nos deve, mas ele quer nos apagar a qualquer custo, quer nos destruir a qualquer custo.

Agora temos dentro da terra indígenas a Barragem Norte. E é difícil falar da nossa história porque a gente não tem apoio. A gente tem o Ministério dos Povos Indígenas, que está no início e pouco tem nos apoiado. 

E o estado mesmo, pegando aí Jorginho Mello… tivemos muitos governadores que quiseram riscar a história dos povos indígenas do mapa. E Jorginho Mello tem sido constante para querer nos ver derrotados, querer nos matar a qualquer custo. 

Hoje a gente já tem o acesso à barragem, mas ela nunca mais vai ser o normal dela, deu chuva esses dias aqui, o pessoal já fica temeroso, porque dá muito deslizamento, a represa sobe muito rápido. Até mesmo porque duas comportas não estão funcionando e as outras duas estão “funcionando” – uma tá na metade emperrada e a outra nem desce. 

Não é fácil, mas a gente já nasceu na luta, a gente continua na luta e a gente morre na luta. E assim como a gente morre na luta, mas quando morremos nasce mais dois que vem pra luta. Acho que é isso o que tenho para falar.

Em relação aos meios de comunicação, o que a mídia poderia fazer para ajudar mais?

A mídia deveria falar o real e não acobertar. Muitas vezes a mídia não vem para dentro da terra indígena pra ver como que está a situação, eles pegam coisas que tão no Facebook, no Instagram e falam disso. Mas ninguém vem aqui ver, por exemplo, nos períodos de enchente, como estão os indígenas. A atrocidade, ver as crianças morrendo por causa de água contaminada. 

Antes da construção da barragem a gente tinha 970 hectares de terra fértil pra poder plantar, que era às margens do rio. Hoje nossas terras férteis não produzem mais, porque estão embaixo d’água. A gente está no meio das pedras, no meio das montanhas, pra poder sobreviver. 

Para mídia, nós somos os vagabundos, os que merecem morrer mesmo. A mídia precisa vir pra dentro da terra indígena pra poder contar a real história. 

Hoje, nós temos os nossos próprios estudantes de jornalismo, medicina, direito, que essas pessoas que eu tenho certeza que daqui uns dias vão estar batalhando e lutando pelos nossos direitos e também disseminando a nossa real história. 

* Berta Thiesen, 22 anos, comunicadora e repórter na rede Jovem Pan. Leitora assídua, amante de música antiga, sorvete e noites viradas. Integrante da Sonserina, em Hogwarts. Nunca teve dúvidas de que jornalismo seria seu destino. Sonhadora até que se prove o contrário, seguindo a filosofia de ser uma metamorfose ambulante.

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