Em entrevista, professor conta quais foram os impactos do regime militar, que completou 60 anos em março.
Autor: Paulo Sava*
Editora: Prof. Larissa Bezerra
Há 60 anos, o Congresso Nacional anunciou a vacância da Presidência da República no dia 2 de abril, uma quinta-feira, após a Páscoa. O então presidente da República, João Goulart (Jango) foi deposto em 31 de março, dando início ao Golpe Civil-Militar, que originou a ditadura que perdurou 21 anos, até 1985.
Torturas, perseguições, censura, sequestros e execuções cometidas por agentes do governo foram as principais marcas deste período. O professor Valter Martins, do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), conta o que ficou como consequência disso para a sociedade brasileira.
RV – Professor, temos um marco neste país, chamado Carlos Fico, um dos maiores pesquisadores nesta área, que faz um verdadeiro pente fino em toda esta história, através do livro “O golpe de 1964”. O que o senhor pode pesquisar desta ditadura, deste golpe militar, e o que isto trouxe de consequência para o Brasil nos anos seguintes?
Professor Valter – O golpe militar de 1964, na verdade foi civil-militar. Há uma discussão em que os pesquisadores acreditam que seja uma nomenclatura mais correta. civil-militar porque houve, na época, um apoio não pequeno de parte da sociedade brasileira, sociedade civil, instituições, boa parte da classe média urbana, Igreja Católica e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Algumas instituições como estas, posteriormente, viriam a se tornar opositoras da ditadura porque perceberam que a coisa foi um pouco além daquilo que deveria ter ido.
A própria OAB foi uma delas?
Sim. Naquele momento, o país estava vivendo uma instabilidade muito grande e o governo do Jango teve muita dificuldade para tomar posse, pois ele estava em missão na China comunista, e isto foi utilizado inclusive pelos militares para tentar evitar que ele retornasse e assumisse o cargo de presidente na vacância em função da renúncia de Jânio Quadros. Jânio tentou, na verdade, com esta renúncia, conseguir poderes maiores, ele queria governar sem o Congresso. Como o Congresso aceitou a renúncia, ele acaba realmente se desligando do governo. Mas, pela Constituição, o vice deveria assumir. Como ele estava na China, fez todo um périplo até conseguir chegar de volta ao Brasil com a campanha pela legalidade, liderada por Leonel Brizola. O Brasil teve que mudar o sistema de governo, se estabeleceu o parlamentarismo, sendo o primeiro-ministro Tancredo Neves na época. Só assim, os militares e o Congresso concordaram em dar posse para o João Goulart. Compreender este golpe é algo extremamente importante para que a gente consiga compreender o próprio Brasil de hoje. Depois de 21 anos da Ditadura Militar, a redemocratização e tudo o mais, muitas são as consequências desse momento histórico e que estão presentes até os dias atuais.
O senhor pode citar algumas delas?
Por exemplo, a militarização da polícia. Temos uma polícia atualmente que, infelizmente, age como no período da ditadura. Ela agiu com muitas liberdades e cresceu muito em detrimento da Polícia Civil. Temos uma polícia que é bastante violenta, truculenta, esta política do “bandido bom é bandido morto”, este encarceramento em massa. Agora, tivemos o retrocesso que foi a questão da criminalização do porte de drogas e tudo o mais. O mundo inteiro está caminhando na direção oposta. Quer dizer, a guerra às drogas é falida há muito tempo, e por que este comércio, que boa parte dele é dominado por políticos de direita e extrema direita, continua insistindo nesta tecla? A gente tem a terceira maior população carcerária do mundo, e não precisa disto, tem um monte de jovem que deveria estar na escola. Então, é uma das consequências do período militar, que deu grande poder para a polícia. Agora, a gente está vendo isso novamente, por exemplo, no governo Tarcísio (de Freitas), em São Paulo, na baixada santista. Quanta gente morreu que era trabalhadora, não tinha nada a ver com tráfico e bandidagem, e acabou morta nesta vingança que foi promovida pela polícia. O Brasil precisa de mais paz e pacifismo.
Tem algo nestas intervenções da Polícia que possamos comparar na ditadura militar, na história da repressão aos movimentos estudantis daquela época?
Hoje, realmente esta truculência da polícia é muito grande e, às vezes, os jovens estão numa esquina batendo papo e se algum deles por acaso é pego com um “baseadinho”, um “cigarrinho”, ele já vai ser jogado num presídio, onde vai aprender realmente o que é crime. Deveriam ser medidas educativas, mas se a legislação fosse um pouco mais flexível e mais educativa e não punitiva, eu acho que teríamos um pouco mais de avanços. A Alemanha recentemente liberou o consumo de maconha e determinadas drogas porque, realmente, isto gera um custo enorme para o país, perdas de jovens que ficam encarcerados e impedidos de trabalhar, produzir e estudar. É um custo para o Estado, que mantém estes presídios, para nós. Tem que ficar na cadeia bandido perigoso, que precisa ficar preso. Quem vai detido são os pequenos, os grandes traficantes acabam se safando em grande parte das vezes. Muitos movimentos e muitas liberdades de expressão têm sido cerceadas. Isto é preocupante porque liberdade de expressão e de imprensa é algo que define se estamos numa democracia ou não. Uma das primeiras providências de qualquer ditadura é fechar o Congresso Nacional, ou seja, a casa do povo, os representantes que foram eleitos pelo povo para legislar. A imprensa é livre, é uma das principais “vacinas” para que as pessoas, inclusive os governantes, extrapolem nas suas prerrogativas. É por isso que ditaduras de direita e esquerda possuem sua própria imprensa e transmitem à população a sua própria versão dos fatos, da história, e assim por diante.
É o que se diz na maioria dos livros, especialmente dentro deste tema da ditadura militar…
A História foi reescrita várias vezes e em vários regimes que se sucederam e se alternaram no poder em vários lugares. Então, algumas figuras desaparecem simplesmente dos livros didáticos e assim por diante. A história que a gente aprendia nos livros didáticos do período militar é muito diferente da ensinada hoje.
O que você aponta como diferenças entre o Brasil Imperial e a ditadura civil-militar, por exemplo?
A história do Brasil Imperial exaltava Dom Pedro I, a Princesa Isabel libertou os escravos, Dom Pedro I proclamou a Independência do Brasil sem derramar sangue, o que não é verdade. A gente sabe o que houve, guerras de independência em vários pontos do país, resistência das tropas portuguesas que estavam aqui e só foram embora porque foram expulsas realmente. É uma história muito positivista neste período, que falava dos heróis. A população que construiu o Brasil, inclusive a população escrava, simplesmente é apagada da história. Com relação à abolição da escravidão, a Princesa Isabel assina a Lei Áurea quando a escravidão já estava praticamente podre, estava caindo, os escravizados estavam fugindo das fazendas, assassinando feitores, senhores, ou seja, era uma situação insustentável. Esta história não era ensinada, era pouco conhecida. Com a redemocratização, houve um grande número de estudos que trouxeram muitas informações novas, por exemplo, a respeito deste período da escravidão no Brasil desde o período colonial. Na Ditadura, a História contada nos livros didáticos era sem conflitos e tensões, tudo era mais ou menos tranquilo no Brasil em oposição a outros lugares. Havia um ocultamento de uma série de questões da história que não eram muito convenientes. Resistência era uma palavra bastante subversiva, como se dizia durante o período militar. Era associada à esquerda, aos comunistas, aos subversivos.
E havia muito disso, a imprensa não poderia mostrar se o presidente fosse para um hospital ou se ficasse doente, por exemplo. Havia um certo cerceamento, não?
Eles tinham censura, então, as notícias eram antes mesmo das publicações olhadas pelos censores e só iam para publicação depois disso. Não se podia noticiar qualquer notícia, e mesmo assim, havia as maneiras corretas de se fazer isso. Isto aqui é contra, não ajuda, não é positivo. Assim, você só tem a imprensa com uma versão, e todo mundo publicava as notícias de uma forma padronizada, e os censores estavam lá. Isto se estabeleceu na imprensa, e aí os jornais, rádios, televisão, a hora do Brasil que vinha desde o período do Vargas e ainda existe. Hoje existe uma liberdade de horário das rádios, mas antes era às 19 horas. Quem conhece a Hora do Brasil, eram só notícias boas, positivas, como se o Brasil não tivesse grandes problemas, grandes coisas a serem resolvidas. Era um dos resquícios. Hoje, dependendo do governo, as coisas são veiculadas de uma forma um pouco diferente. Mesmo hoje, é um canal de propaganda do governo, não importa qual ele seja. Só não é obrigatório ser às 19 horas, mas continua dando seu testemunho de longa data, desde quando foi criado no governo de Vargas.
Depois de 1985, o Brasil se redemocratizou de fato?
Do ponto de vista institucional, a gente tem o Congresso funcionando da forma que vemos, com esta negociação toda que faz parte do jogo político e democrático. O que não é muito interessante é realmente você, por exemplo, ter essas verbas, que somam bilhões de dinheiro público, para financiar campanhas. As campanhas nos Estados Unidos, por exemplo, são totalmente privadas. Os candidatos têm que correr atrás de patrocinadores e contribuintes para a campanha. O estado não põe dinheiro nisso. Agora, você imagine se este dinheiro, que literalmente é jogado pelo ralo, fosse canalizado para financiar educação, saúde, construir moradias populares, que é o que precisa. Estes problemas não estão resolvidos. O curioso é que algumas pessoas falam contra, mas na prática, todo mundo vai lá pegar o seu quinhão, não importa se é partido da extrema esquerda ou da direita, não importa, todo mundo quer a sua fatia para permanecer no poder, que é o que interessa. No final das contas, parece que é isso que move boa parte dos nossos políticos. Por isso, sou contra a reeleição.
Esta redemocratização entrou na cabeça do povo, na sua visão?
Em boa parte do povo, sim. É você poder viver sem aquele medo de, de repente, ser preso por falar alguma coisa em algum lugar. Quando tínhamos a censura, ela não estava só na imprensa, mas estava presente dentro das universidades, via agentes do DOPS e da Polícia, disfarçados, assistindo aula e tudo o mais, justamente para fazer suas anotações e denunciar. As pessoas eram presas, professores, estudantes. Professores foram aposentados, outros tiveram que ir embora para o exílio. Fora o pessoal que realmente foi preso, torturado, morto. Você ter esta normalidade é algo realmente bastante importante e fantástico. De casos recentes e atuais, a gente vê que muita gente, acredito que, em parte, por ignorância, elogia a ditadura, diz que gostaria que ela voltasse porque o Brasil era melhor. O Brasil não era melhor, tinha menos gente. O Congresso era engessado dentro de uma estrutura ditatorial. Você tinha uma oposição que era o MDB, o bipartidarismo durante o período militar, que não conseguia muita coisa. Eles elegiam alguns deputados e prefeitos, mas realmente a ação era bastante limitada.

Um dos integrantes da comissão da ditadura foi Tancredo Neves, que depois, foi eleito em 1985 pelo Colégio Eleitoral.
Ele foi eleito presidente, adoeceu e aí surgiram muitas histórias e lendas urbanas de que não deixaram ele tomar posse. Então, a própria transição foi bastante difícil e conturbada. Muitos que apoiaram o Golpe de 64 contavam que os militares fossem ficar pouco tempo e devolver o governo aos civis, tanto é que o Jango seria candidato à reeleição em 1965 e o JK (Juscelino Kubitschek) também. O golpe foi civil-militar, mas a ditadura foi eminentemente militar porque realmente os militares se apossam do poder e fazem o seu uso próprio. Nem eles pensaram que ficariam todo este tempo, não foi algo premeditado, de “vamos tomar o poder e ficar 15 ou 20 anos”. Isto foi se desenvolvendo na sucessão dos governos, lembrando que a gente teve, na época, um apoio externo, e também um grande apoio interno da sociedade. Parte da sociedade que apoia o golpe se arrepende, vê que aquilo não estava andando muito bem, as coisas estavam se deteriorando, os militares estavam fechando a sociedade, até que culminamos no AI-5. Inclusive, os Estados Unidos ajudam no sucesso deste golpe que destituiu o João Goulart, que era um presidente legítimo naquele momento e que, nas vésperas do golpe, tinha 70% de apoio da população.
Os Estados Unidos apoiaram a ditadura militar?
Sim, totalmente. Inclusive, havia navios nas proximidades, caso houvesse necessidade. O golpe em si se deu de forma um tanto quanto tranquila porque realmente houve muito apoio. As pessoas que foram se manifestando contra, aos poucos foram sendo presas, e isto não foi muito divulgado na época. Todo este discurso que estamos vendo reeditado recentemente do perigo do comunismo, também havia. O pessoal fez uma campanha, na época não havia redes sociais, mas boa parte da imprensa embarcou nesta história de que o Jango era comunista, favorável a criar uma ditadura sindical no Brasil. O Jango era um pecuarista do Rio Grande do Sul, criador de gado, e um criador de gado comunista era meio raro. Na prática, ele estava tentando implementar as reformas de base, na educação e na economia, estava tentando fazer uma reforma tributária no Brasil. Quando ele toca na reforma agrária, isto vai animar uma parte da população, mas vai assustar outra. Na época, por exemplo, a gente tinha as ligas camponesas atuando no Nordeste. Bem depois, surgiu o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Então, se utiliza e se cria este clima de medo de que o comunismo iria chegar. Fizeram terrorismo e divulgaram isto pela imprensa, e realmente muita gente se assusta. Agora, falar de comunismo nos dias atuais para tentar assustar as pessoas em relação ao Lula ou quem quer que seja é muita falta de conhecimento histórico. Restaram muito poucos países comunistas no mundo, e não há a possibilidade de novos países virem a se tornar comunistas. Sobraram Cuba, Coreia do Norte e China, que tem partido comunista poderoso, mas atua na economia de forma bastante capitalista, é um caso muito peculiar. Cuba, se os Estados Unidos suspenderem as sanções, acaba o comunismo no dia seguinte. Sobraram poucos regimes comunistas, de maneira que acreditar numa conversa dessas é falta de estudar história realmente.
O senhor acredita que o dia 8 de janeiro de 2023 foi uma tentativa de golpe?
Sim, foi uma tentativa de desestabilizar um governo recém-empossado. O Lula foi eleito por uma diferença de votos não muito grande, pequena, mas tivemos eleições anteriores em que a margem foi menor ainda e ninguém questionou o resultado das eleições. Quando a gente volta para a República Velha, realmente o voto era aberto, não era secreto, então as fraudes estavam na ordem do dia. Era o voto de cabresto, os currais eleitorais, a população vivia, em sua maior parte, no campo e dependia dos donos das terras para viver, então votava em quem o fazendeiro mandava. Mas tivemos o movimento tenentista dos anos 20 se contrapondo a isto, e aí entra 1930 como que profetizando o fim daquela política para se inaugurar uma nova política. O Vargas não vai se utilizar da estrutura oligárquica dos estados para impor o seu governo: ele tira os caciques locais para pôr os dele, seus interventores e assim por diante. Então, a coisa não se altera fundamentalmente, muita coisa permanece. Lembrar o golpe de 64 é rememorar e tomar uma vacina, fortalecer a imunidade da democracia, porque, se a gente vai esquecendo, pode acontecer novamente. É a mesma coisa que os judeus falam, que o Holocausto tem que ser relembrado para não acontecer novamente.
Esta é uma das diferenças que nós temos na época atual…
Sim, muita gente fala que, se o Hitler conseguiu o que conseguiu com o rádio, imagine se ele tivesse a TV, e vamos atualizar isso, se ele tivesse as redes sociais… Então, realmente, como a informação de qualidade é um fiel da balança para as democracias. Qual é a grande ameaça para as democracias no mundo hoje? As polarizações. O filme “Guerra Civil” trata muito disso. Eu vi uma entrevista com o Wagner Moura, que disse que o filme mostra os Estados Unidos divididos, em guerra, as pessoas se matando, e não se preocupa em contar o motivo disto ter começado. Ele mostra justamente a imprensa, o Wagner é um repórter, jornalista, que está correndo para Washington e tentar entrevistar o presidente. A polarização faz com que as pessoas abandonem o debate político, parem de conversar e substituam a racionalidade pelo ódio e pela violência. As pessoas, politicamente, podem não concordar, mas elas têm que conversar e chegar a alguma conclusão, e que se decida pelo voto no Congresso. Quando as pessoas abandonam o debate político, elas partem para a ignorância. É o que estamos observando no Brasil e nos Estados Unidos, que está passando por um processo. A democracia americana passou pelo janeiro de 2022, em que o pessoal invadiu o Capitólio questionando o resultado da eleição. Foi muito complicado, todo aquele povo está preso e respondendo por processos complicados. Realmente é muito perigoso quando as pessoas olham umas para as outras e enxergam no outro um inimigo e estão dispostas a partir para a violência. Foi muito perigoso o que aconteceu nos Estados Unidos e no Brasil, foram ameaças diretas à democracia, aos resultados de eleições legítimas. Estamos vivendo esta polarização a olhos vistos, com grupos se degladiando na internet, pessoas brigando nas ruas e em vários lugares. No caso brasileiro e nos Estados Unidos, isto acontece o tempo todo: o pessoal começa a misturar política com religião, incluindo, no caso do Brasil, os evangélicos e tudo o mais. Nos Estados Unidos, apesar de todos os processos que o Trump está respondendo, as pessoas o veem como o salvador dos Estados Unidos, uma espécie de Messias.
*Paulo Sava é repórter, editor, produtor e locutor da Rádio Najuá de Irati Ltda. Atua há 21 anos no rádio e atualmente apresenta o programa Meio Dia em Notícias na Super Najuá FM 92,5 de Irati – Paraná.